Toda a parte central da faixa litorânea riograndense, desde a barra do Rio Grande até o saco de Palmares, é uma colossal restinga de areia, a maior de todo o litoral brasileiro. Num comprimento de 250km sobre 25 de largura máxima e 8 de mínima, esta faixa de terra, filha do oceano, risca o azul das águas, tão frágil que o primeiro embate dos vagalhões parece suficiente para à destroçar. Uma viagem terrestre, penosa, interminável, pouco revela das belezas naturais da região; mas um voo aéreo, abrangendo de um olhar os três elementos grandiosamente simples desta paisagem, o oceano, a areia e a lagoa, proporciona sentimentos de mais puro gozo estético. Como em toda a parte, preponderam duas cores, o amarelo da areia e o azul da água e do firmamento. A beleza destes coloridos reside em dois fatores: nos matizes da distribuição e no contraste da composição.

Parque Nacional da Lagoa do Peixe – Rio Grande do Sul – Foto Ieda Funari

O amarelo da areia nada tem de berrante ou de importuno: tirante a vermelho na praia úmida, parece-se com um caudal imenso de ferro fracamente posto ao rubro, cujo calor é constantemente abafado pelas espumas brancas da ressaca; cor de palha no declive oceânico das dunas, transpira um tom quente, como que aveludado, efeito dos marcos ondulatórios; alvo, apenas com uma ideia de amarelo, nas cristas dos cômoros, delas se desprende em véus de tinta pulverizada a matizarem as depressões úmidas e dos campos. Após este crescendo em claridade e brilho, segue um esmorecimento suave na mistura com o verde da vegetação. 

Parque Nacional da Lagoa do Peixe – Rio Grande do Sul – Foto Ieda Funari

Nas dunas vegetadas, o verde acentuado da folhagem mirtácea está em contraste forte, mas agradável, com a alvura amarelada da areia; ao redor dos olhos de água reaparece, por instantes, o amarelo ferruginoso da praia; nos campos secos a combinação com as manchas de limo, e de terra humosa e a cor verde-cinzenta do tapete gramináceo produz um matiz pardo esverdeado, com todos os cambiantes entre a cor pura da areia e o verde puro da vegetação cerrada; nos matos de galeria e nos capões, enfim, o amarelo morre na sombra das copas, restando delas apenas um vislumbre, que paira sobre toda a paisagem. Na paisagem em apreço, este crescendo e decrescendo do amarelo da areia está muito longe de se enquadrar dentro dos moldes de um esquema monótono: primeiramente, porque da margem da Lagoa dos Patos parte outra onda de cambiantes amarelos, embora menos volumosa, confundindo-se com a da praia oceânica nos campos pardacentos da linha central; em segundo lugar, porque os olhos de água e as lagoas são outros tantos focos de irradiação, interferindo com seus matizes nas ondas provenientes do oceano e da lagoa, apagando a rigidez e aumentando a variedade; enfim, porque a largura variável da restinga estende e comprime a zona de influência de várias ondas de amarelo, reforçando ou diluindo-lhes os efeitos coloridos. O sentimento estético engendrado por todos estes fatores é a dum movimento largo de ondulação, de aumento e diminuição, de fluxo e refluxo colorido das ondas do mar, embalando o espírito em suas harmonias. 

Parque Nacional da Lagoa do Peixe – Rio Grande do Sul – Foto Ieda Funari

Quanto ao azul, a escala de matizes, menos rica e menos sistematicamente distribuída, é compensada pelo volume. Entretanto outro é o azul profundo do oceano em descanso, o azul salpicado de flocos espumosos sob a ação do vento sul, o azul revolto pelos brancos esquadrões da ressaca; nas lagoas, o azul se condensa nas porções mais profundas, adquire um teor de verde sobre as algas flutuantes, mistura-se com o pardo escuro dos sedimentos humosos, com o amarelo das areias, terminando por ceder lugar ao franco verde da vegetação palustre; e quando o vento sul encapela as ondas, o azul, pelo teor de sedimentos limosos e arenosos em suspensão, se transforma em cor de café. 

Parque Nacional da Lagoa do Peixe – Rio Grande do Sul – Foto Ieda Funari

Na composição do painel total, a harmonia resultante dos contrastes é única no seu gênero. Os dois coloridos fundamentais do litoral exercem sobre o espírito dois efeitos complementares, dando por resultado um sentimento humano profundamente estético. O amarelo claro das areias atrai o olhar em primeiro lugar, e pela forma estreita e comprida da restinga e a movimentada distribuição dos matizes, lhe imprime um movimento para distante; o azul do oceano e da Lagoa, pelo contrário, por sua profundidade e superfície plana oferece ao espírito dois imensos retiros de descanso, retardando o movimento engendrado pela cor e forma dos sedimentos arenosos; ora, nesta tensão secreta produzida por estes dois fatores opostos reside a última razão por que a paisagem central da costa rio-grandense é bela. Como, de um lado, o descanso da água em colorido e movimento, não é absoluto, e como, do outro lado, a inclinação do espírito, em virtude de sua própria vitalidade, se acha naturalmente deslocada em sentido do movimento, o influxo da faixa litorânea prevalece sobre o da água, causando no espírito o ondear nunca completamente analisável do belo, vizinho do mistério e paladino de Deus.

Parque Nacional da Lagoa do Peixe – Rio Grande do Sul – Foto Ieda Funari

O quadro do litoral não seria perfeito, se não levasse-mos em conta as variações do firmamento. O céu totalmente coberto de nuvens baixas deprime todas as tintas e avoluma o peso das formas; a atmosfera poeirenta e brumosa dos dias de verão, dilui os contrastes e desorienta o espírito; os bulcões da tempestade unilaterizam a iluminação e, pelos fenômenos impressionantes, deslocam a sensação do belo aprazível para o belo grandioso; é nos dias claros, estando o sol perto do meridiano, que aquelas paisagens encontram a sua mais legítima expressão: então um olhar por entre duas séries de dunas vegetadas sobre uma nesga do oceano azul marinho tocando no azul pálido do firmamento – ou uma observação aérea pairando sobre todo aquele imenso painel de água, areia e vegetação – conduzem o mais perto possível daquilo que se chama a beleza do litoral, atrativo invencível, enquanto houver homens de espírito simples e natural. “

Parque Nacional da Lagoa do Peixe – Rio Grande do Sul – Foto Ieda Funari

Conteúdo

P. BALDUINO RAMBO, S. J. (1954)

A Fisionomia do Rio Grande do Sul